Nas últimas semanas, os bebês reborn – bonecos hiper-realistas feitas à mão para parecerem bebês de verdade – ganharam destaque nas redes sociais e na mídia. Embora essa prática exista há décadas, viralizou recentemente após influenciadoras compartilharem suas rotinas com esses bonecos, gerando não só curiosidade, mas também polêmicas, discussões jurídicas e até projetos de lei no Congresso.
Mas o que de fato está em jogo aqui? O que esse movimento escancara sobre nossas relações emocionais, nossas faltas e os vazios que, muitas vezes, tentamos preencher?
Brincar é coisa de criança… ou não?
Do ponto de vista do desenvolvimento emocional, o brincar tem um papel essencial desde a infância. Segundo os fundamentos que compreendemos na psicologia, autores como Piaget, Melanie Klein e Winnicott mostram que o ato de brincar é, na infância, uma ponte entre a fantasia e a realidade. É no brincar que a criança experimenta, elabora emoções, aprende, organiza seus afetos e dá sentido ao mundo.
Mas essa capacidade não desaparece na vida adulta. Na verdade, o brincar – entendido aqui como qualquer atividade simbólica, criativa e expressiva – continua sendo uma ferramenta psíquica que oferece alívio, prazer, segurança emocional e, muitas vezes, funciona como espaço de resgate da própria história.
Quando o brincar vira fuga?
O problema começa quando esse espaço simbólico, que deveria ser uma pausa saudável na vida adulta, passa a ocupar o lugar de fuga da realidade ou do enfrentamento de dores emocionais não elaboradas.
Winnicott nos ensina que objetos podem se tornar “objetos transicionais” – elementos que ajudam no processo de amadurecimento emocional, especialmente nos momentos de separação, ausência ou construção de autonomia. Mas quando esse objeto deixa de ser ponte e passa a ser destino, há um risco: o objeto não apenas simboliza, mas começa a substituir vínculos, afetos e experiências reais.
Por isso, é fundamental se perguntar:
- Isso está me ajudando ou me aprisionando?
- Estou encontrando alívio saudável ou fugindo daquilo que preciso elaborar?
- Minha vida social, profissional ou afetiva está sendo prejudicada?
Quando a boneca deixa de ser hobby e começa a ser usada como única fonte de preenchimento emocional, isso pode sinalizar que existe algo não elaborado internamente.
O que esse bebê reborn representa?
Do ponto de vista da psicanálise, especialmente na visão de Melanie Klein, o brincar também é uma forma de elaborar fantasias inconscientes, angústias, medos e desejos. Através do brincar, reorganizamos nossa realidade psíquica e encontramos modos de lidar com nossas dores e faltas.
Na vida adulta, essa função simbólica continua presente. O bebê pode representar cuidado, afeto, proteção ou até servir como elaboração de experiências que, por alguma razão, não foram vividas ou foram interrompidas – como lutos, perdas, relações não concretizadas ou traumas emocionais.
Mas é importante compreender: objetos não curam. Eles são suportes simbólicos, importantes e até terapêuticos, desde que estejam integrados a um processo consciente, com clareza emocional e, muitas vezes, acompanhados por psicoterapia.
Entre a fantasia e a realidade: qual é o limite?
Aqui entra um ponto crucial que Piaget ajuda a compreender: a diferenciação entre fantasia e realidade faz parte de um desenvolvimento saudável. Na infância, essa fronteira é mais flexível, mas com o amadurecimento, espera-se que o sujeito consiga transitar entre esses dois mundos sem perder a noção do que é simbólico e do que é real.
Quando o brincar ocupa a vida de forma isolada e começa a gerar prejuízo – como afastamento social, dificuldades no trabalho, isolamento afetivo ou dependência emocional daquele objeto – acende-se um alerta.
O limite saudável é quando esse hobby é parte da vida, não quando se torna a vida inteira.
O que, de fato, estamos tentando cuidar?
No fundo, o convite aqui não é um julgamento sobre quem coleciona bebês reborn, mas sim um convite à reflexão profunda:
O que essa bebê simboliza pra você?
Ela representa criatividade, cuidado, conexão com a sua história?
Ou ela está sendo usada para preencher dores, vazios ou ausências emocionais que ainda não foram olhadas com a profundidade que merecem?
A resposta nunca está no objeto em si, mas na relação que você estabelece com ele – e, principalmente, na relação que você tem consigo mesma.
Porque, no fim das contas, o que está em jogo não é a boneca. É sua história. Sua dor. Sua busca. E, quem sabe, a oportunidade de transformar tudo isso em cuidado de si.
Sou Joana Santiago | Psicóloga